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Cancro no Cabelo

por Mammy, em 27.05.14

Já o J. estava na cama, digo-lhe:

- Olha, vou deixar aqui na tua mesa, ao lado do saco do treino, um saco para a avó levar amanhã. Por isso, não te espantes quando o vires.

- Um saco? O que é que tem?

- É a minha cabeleira para a avó levar.

- Para que é que ela quer a tua cabeleira?

- Para dar à I.

- A I. também tem cancro? E quer a tua cabeleira?

- Tem. A cabeleira é para ela ver se quer e se gosta.

- Porra, mãe, tanta gente tem cancro!

- Pois é, é mesmo muita gente.

- E é sempre no cabelo...

- Não é no cabelo, é noutros sítios, mas muitas pessoas ficam sem cabelo. 

- Porque é que o cancro faz cair o cabelo?

- Não é o cancro que faz cair o cabelo, é um medicamento para matar o cancro.

- Ah, então se a pessoa cortar o cabelo todo, deixa de ter cancro?!

- Não, J., a pessoa não fica boa por ficar sem cabelo. A pessoa fica boa porque o medicamento que faz cair o cabelo, mata o cancro.

- E se a pessoa não tomar esse medicamento?

- Morre. Pode morrer...

- Não há outros medicamentos?

- Agora já descobriram outros, mas há cancros em que ainda só este é que funciona.

- No outro dia, vi o T.A.. Ele anda sempre de gorro na cabeça. Também tem cancro, não tem?

- Tem.

- Porque é que ele está sempre de gorro? Não gosta de se ver sem cabelo?

- Provavelmente... Ou então tem frio na cabeça. Como ele tinha o cabelo grande, é capaz de ser por causa do frio. As pessoas que não estão habituadas a ter o cabelo curto, quando o cortam, ficam com frio na cabeça.

- Ah! 

- Boa noite, menino, dorme que já é tarde. Dorme bem!

- Boa noite, mãe! Até amanhã!

 

publicado às 22:53

IPO - 1ª Inspecção Periódica Obrigatória Anual

por Mammy, em 30.04.14

Ontem foi dia de IPO.

 

Apesar de todas as dores que me causa estar no IPO, é sempre bom ir lá levar um banho de humanidade, de vez em quando. Ao contrário de alguns sítios que temos de frequentar cá fora, ali somos gente, mais do que isso, ali somos gente a cuidar. E a vida também está aí: no cuidar e sermos cuidados. 

 

Naquele lugar onde também mora a morte, apercebemo-nos que damos importância a coisinhas insignificantes diariamente e que estas são minúsculas perante a grandiosidade que encontramos no lenço oferecido por uma estranha a um velhote entubado que não consegue controlar a saliva que lhe escorre; na bandolete com lacinho que circunda a careca da menina que anda de baloiço no parque infantil; no olhar preocupado da mãe que acompanha o filho adulto aos exames; na cabeleira atabalhoada de corte fashion da senhora de meia-idade; na ajuda da enfermeira a ajeitar a echarpe que tapa uma careca luzidia; na mão da mulher que aperta a do marido incapaz de levantar os olhos dos pés; na voz da médica que nos acalma as inseguranças.

 

E é nestes momentos, em que sentimos a humanidade transbordar à nossa volta, que damos o real valor ao dia lindo que está lá fora e à capacidade de o desfrutar.

 

É nestes momentos que me sinto imensa por poder sair à rua e, simplesmente, abraçar o dia.

 

publicado às 00:35

O Cancro - Uma Vez Mais

por Mammy, em 08.04.14

Manuel Forjaz morreu este sábado. 

Não conhecia a sua história até tropeçar no vídeo da entrevista que o Daniel Oliveira lhe fez. Postei-a aqui na quinta-feira. Não por concordar com ele, não por discordar. Nesta cena do cancro não consigo concordar ou discordar com as pessoas. Posso identificar-me mais com uns do que com outros, mas concordar... não.

 

O cancro é "um mal pessoal e intransmissível". Cada cancro é um cancro. Cada pessoa sente o seu de maneira diferente. Há quem se isole, há quem chore, quem se revolte, quem se ria dele, quem o ignore, quem o viva intensamente... Há um leque enorme de reacções ao cancro e cada doente tem a sua. Nenhuma reacção é a correcta e nenhuma está errada. O cancro é nosso, só nosso. Por mais que o vivam connosco, ele será sempre só nosso (uma das "coisas boas" é não o podermos passar aos outros), por isso só nós podemos saber como o preferimos viver. Sim, é uma questão de preferência. Ou talvez não... Talvez seja mais uma questão de resistência. Como se lhe conseguimos resistir melhor... Como conseguimos viver com ele, estar aqui estando realmente aqui...

 

Manuel Forjaz morreu no sábado. Confesso que não senti uma dor especial pela sua morte. Não o conhecia. Mas senti dor pela morte de mais um doente de cancro. Sinto sempre. Cada um que se vai, leva um pouco de mim e da minha esperança. Cada um que se vai, é uma perda para mim e para todos nós, doentes oncológicos em particular, e Humanidade em geral.

 

Cada um que se vai, é uma dor...

publicado às 03:00

Um Ano

por Mammy, em 08.03.14

Parece incrível, mas faz hoje um ano que a Silvina (Rita) escreveu o seu último texto.

 

Saudades tuas.

 

publicado às 12:19

A Liberdade de Viver Um Dia de Cada Vez

por Mammy, em 19.01.14

Durante a minha luta oncológica, disseram-me várias vezes "tem que aprender a viver um dia de cada vez!" 

Nunca consegui. Pensava " viver um dia de cada vez, o tanas! Isto não é viver, é uma merda! Para quê prolongar esta merda? Tratamentos, stress, a vida por um fio, dúvida, sempre a dúvida se o dia seguinte chegará, dor em mim e nos outros. Não quero prolongar isto, quero que passe rápido para a seguir sim, viver de verdade! Todos os dias, vivê-los e saboreá-los, depois". 

Assim fiz. Durante aquele ano de tratamentos, mais coisa menos coisa, vivi em estado moribundo. Deixei que me virassem do avesso, fui às quimios, às radios, às consultas, aos exames, às pequenas cirurgias, etc., etc. Bebi os dois litros de água diários, religiosamente, deixei de fumar, de comer as coisas que me faziam mal, tomei todos os medicamentos que me receitaram à hora certa, enfim, portei-me como a mais bem-comportada das doentes. Na verdade, não vivi aqueles tempos, apenas andei por aí na esperança que acabassem depressa. Mas fui conseguindo aproveitar os poucos momentos bons que me apareciam, com alguma tristeza latente e com a sensação de que poderia ser a última vez que iria viver aquilo, mas aproveitando. Cada minuto de amor, era vivido intensamente. Talvez não vivido, mas sentido, sentido intensamente. 

Um dia de cada vez nunca consegui. Queria todos aqueles dias num, numa hora, num minuto, num segundo. Tudo o mais rápido possível para, a seguir, viver. Desejava poder fazer forward àquela parte da vida como a uma parte chata de uma canção. Acho que, por um lado, até o consegui, pois apaguei da memória muitos momentos dolorosos dessa altura. Tenho essa capacidade de seleccionar memórias, de guardar apenas aquilo que me parece que vale a pena. O resto varro lá bem para trás de todas as memórias que pretendo ir buscar amiúde, arrumo-o tão bem que raramente o volto a encontrar.

 

Agora que já passaram alguns anos sobre este coma voluntário, e que já me sinto capaz de tentar analisar o porquê de optar por viver moribunda nos dias que podiam ter sido os meus últimos, acho que o fiz sim por medo, claro, mas também pela perspectiva da liberdade futura. Foi como se aceitasse a clausura apenas para poder ser livre outra vez. Privar-me de tudo o que fosse necessário para depois voltar a voar. Ao meu ritmo, à minha vontade. Voar tão só. Voar alto em direcção ao prazer, ao lado bom da vida.

É óbvio que podia ter corrido mal e eu ter morrido pelo caminho como tantos outros morrem. Mas daquela vez não correu mal. Libertei-me da doença (não sabemos por quanto tempo, mas libertei) e ainda aqui estou, não plenamente feliz, mas ainda aqui estou. 

 

E fico a matutar no "não plenamente feliz"...

O que me impede de ser "plenamente feliz" agora?

 

Ainda não conseguir viver um dia de cada vez. Não pela doença e as merdas que traz a reboque, que me têm deixado descansar um pouco apesar da sombra que mantêm sobre mim, mas porque os meus dias não são suficientemente bons para que os queira devagar. Continuo a querê-los rápidos, muito rápidos.

 

Porquê?

 

Pela falta de liberdade. Estou livre de doença por agora (pelo menos até à próxima consulta), mas não estou livre de verdade. Não faço o que me dá prazer e isso é uma prisão. Por mais que esteja com quem gosto, por mais saudável que seja, se não fizer profissionalmente o que me dá prazer, vou estar sempre presa. E estar presa a maior parte dos meus dias faz-me querê-los rápidos e que cheguem ao fim o mais depressa possível. Para inverter isto e atrasar o correr da vida, tenho que saber fazer a maior parte dos dias boa, tenho que fazer mais coisas de que gosto do as de que não gosto, tenho que estar mais em sítios agradáveis do que em desagradáveis e tenho que dar um sentido e uma direcção à minha vida. Tenho muito trabalhinho para fazer, ainda.

 

Agora que já sei que quero viver um dia de cada vez como sempre me aconselharam, também sei que o que não quero é esta vida presa.

Quero voltar a voar. Ao meu ritmo, à minha vontade. Voar tão só. Voar alto em direcção ao prazer e às partes boas da vida, saudável e com quem amo ao lado, mas essencialmente, quero viver livre, livre para viver um dia de cada vez.

publicado às 01:59

Parceira de PET

por Mammy, em 06.12.13

Há uns tempos, durante a minha cruzada oncológica, fiz várias PET - Tomografia por Emissão de Positrões.

O exame não é doloroso, no entanto foi dos que mais me custou fazer. Requeria uma longa preparação de jejum e de imobilidade que, para uma pessoa como eu, cujo mau-humor se acentua quando exposta a factores como a fome, o frio e o sono, me deixava para lá do insuportável. Durante as longas horas de preparação só me apetecia bater em toda a gente que cruzasse o meu caminho. Como não o podia fazer, tentava dormir para esquecer a fúria que me invadia.

 

Num destes dias de tortura, dormi durante umas sete ou oito horas numa cama de hospital até me chamarem para a sala, dita, de preparação para o exame. Já tinha uma noite de jejum em cima e estava possessa. 

 

Tal como podem ler na definição de PET que linquei acima, é-nos injectada uma substância radioactiva antes do exame, que nos percorre o corpo e assinala os consumos de glicose anormais das células, uma das características das células tumorais. Antes ainda desta substância radioactiva nos entrar no corpo, dão-nos um relaxante muscular para que não sejam assinalados os normais consumos de glicose da actividade muscular. Depois temos que ficar deitados, calados, imóveis e em jejum até vir o produto radioactivo, encomendado no próprio dia do exame, que demora séculos a chegar. Para que a tortura não seja completa, deixam-nos beber água e fazer xixi.

 

Nesse fatídico dia de extremo sofrimento, quando estava já deitada na sala de preparação, com o relaxante muscular no bucho e a desejar dormir mais um pouco para esquecer a fome, chega a minha parceira de exame. Mulher de uns cinquenta anos, de peruca na cabeça e ligada a uma qualquer ficha que não descobri onde estava. Senta-se na poltrona a meu lado, tira a peruca e diz:

- Ufa, finalmente posso tirar esta porcaria!

Posa-a no colo e começa a falar do seu percurso oncológico. Conta que fez uma data de operações, exames, quimios, radioterapia. Fala sem parar. Vou-lhe respondendo uns "hum, hum", "compreendo", "pois". 

Chega a enfermeira e diz que não podemos falar. A minha parceira cala-se um bocadinho e eu fecho os olhos na esperança que o meu sono a demova de voltar à fala. 

Dali a pouco, volta ao ataque. Fala, fala, fala. Conta tudo ao pormenor. Até que desisto de dormir e decido ficar a ouvi-la. Na verdade, não a oiço muito bem, devido à fome já ter tomado posse dos meus ouvidos, mas decido tentar estar atenta ao que me diz.

 

Durante a sua prosa interminável, fui-me apercebendo que aquela mulher era o maior exemplo de vivacidade que encontrei naquele local moribundo. 

Noutra situação ninguém diria que era portadora de cancro nem que já tinha passado por um infindável leque de exames e tratamentos. Estava pronta para a vida e cheia de positividade. 

Falava comigo como se nos tivéssemos encontrado no cabeleireiro e discutíssemos coscuvilhices da vida de famosos que víamos nas revistas cor-de-rosa que íamos desfolhando, enumerava os órgãos mutilados tal jogador que distribuí cartas para uma nova partida de sueca. Não havia ali um resquício da irritabilidade pela fome que também devia sentir e que, a mim, me atormentava, nem se ralava com a imobilidade ou o silêncio que nos tinham imposto. Falava da vida, da luta do cancro, dos filhos e dos netos da mesma maneira, ao mesmo tempo que ia rodando a peruca nos dedos. Não chorava, nem se queixava das atrocidades que lhe tinham feito. Sorria até. Aceitava, assim simplesmente, todo aquele processo de vida ou morte como se se tratasse de mais um contratempo que lhe foi imposto. 

 

Ao ouvi-la, sentia-me cada vez mais piegas por estar naquele estado, quase incontrolável, de pré-assassinato em massa. 

Eu era a menina mimada, pouco habituada a ser contrariada, e ela uma explosão de energia positiva perante as maiores adversidades. 

Fui encolhendo. Eu, mulher de um metro e oitenta, fique reduzida a meio metro, perante a grandiosidade daquela minha parceira de PET. Sentia-me, a cada palavra dela, mais pequenina e merdinhas. 

Mas, finalmente, pus o cérebro a funcionar, que deve ter registado uma actividade fora do normal na PET, e resolvi ir assimilando o ensinamento daquela mulher. Demorei algum tempo, mas consegui digerir a mensagem que, posteriormente, me deu uma postura diferente perante a doença e os tratamentos que se seguiram.

 

Quando me chamaram para a sala do exame, despedi-me com um sentimento de pena da possibilidade de não a voltar a ver. 

Disse-lhe apenas o costumeiro "boa tarde e as melhoras!" do IPO, mas com vontade de dizer mais qualquer coisa que acabou por não sair.

 

E nunca mais a vi.

publicado às 15:20

A Força e a Coragem do Cancro

por Mammy, em 12.08.13

Quando se fala de e para doentes oncológicos sobreviventes, muitas vezes ouvimos as palavras "força" e "coragem":

"Ai que ela deve ter uma força incrível para aguentar isso tudo!"; "Ele é um homem de coragem para vencer o cancro!"; "É preciso muita força!"; "Só uma mulher de coragem e cheia de força poderia estar aqui tão bem quanto ela está, depois de tudo por que passou!"

 

TRETAS!

 

Primeiro que tudo, o cancro não se vence. O cancro, por quem passa, deixa uma espada sobre a cabeça prestes a cair. Ela estará sempre lá, por mais que a tentemos esquecer. E pode cair a qualquer momento. A espada do cancro vai-nos espicaçando um pouco todos os dias para que nos lembremos que a nossa finitude é iminente. Até à data, curar um cancro é uma utopia. Vencer o cancro é outra ainda maior.

 

Para sobreviver ao cancro não é preciso força nenhuma, nem coragem. É preciso ter essencialmente sorte e bons médicos. E é preciso acreditar que nos vamos tratar, é ter vontade de viver e pôr essa vontade à prova. É deixar os nossos instintos de sobrevivência falarem mais alto do que tudo o resto. Mas força? Coragem? Não!

O doente oncológico vai ao fundo como todas as outras pessoas, só que, geralmente, vai um bocadinho mais fundo. Vê a vida por um fio, vê o corpo degradar-se, faz retrospectivas da vida mais amiúde e escolhe um caminho: deixar-se ir ou levantar-se. E há sempre os que se deixam ir, e que depois se levantam. E há sempre os que não se levantam, mas sobrevivem. E há os que vivem levantados e morrem.

 

Não há força nem coragem, há instinto de sobrevivência, sorte e bons médicos!

publicado às 01:06


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